Web3: os potenciais da tecnologia que vai revolucionar a internet
Provavelmente você já se deparou com palavras como “blockchain,” “criptomoedas” ou “bitcoin”. E pode ser que, tempos atrás, tenha lido sobre uns desenhos exclusivos, os tokens não fungíveis, ou NFTs. Por enquanto, para a maioria essas expressões são um pouco como parentes distantes, aqueles que a gente conhece só de ouvir falar. Mas pode ter certeza: elas cada vez mais farão parte de nossas vidas. Afinal, estão ligadas ao que alguns especialistas consideram a nova revolução da internet, a web3.
Também chamada de web 3.0 ou web semântica, essa etapa deve dar forma a uma internet mais descentralizada, com mais segurança para dados pessoais e maior facilidade de conexão entre diferentes dispositivos. Uma das palavras-chave será autonomia. Os usuários terão mais controle sobre suas informações: poderão decidir como e onde seus dados serão utilizados.
Neste texto, você vai entender o que é a web3, como ela já está sendo aplicada e quais seus potenciais em áreas como finanças, logística e mobilidade. Para deixar mais claras as diferenças em relação ao que existe hoje, vale fazer antes um rápido histórico: afinal, se esta é a web de número 3, o que foram a 1 e a 2?
Web 1.0, o nascimento da internet
Entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, surgiram as primeiras ferramentas práticas ligadas ao que foi batizado de rede mundial de computadores, a World Wide Web (o www que dá início à maioria dos endereços nos navegadores). A internet era composta de páginas estáticas (sem renovação em tempo real), com links que levavam a outras páginas estáticas. Havia quase nada de imagens, quase nenhum vídeo. A única interação disponível era o e-mail. “Era uma internet em que se entrava para consumir informação. A maioria das pessoas não produzia, não colocava nada”, relembra Jonatas Santos, líder de Inovação na Bosch. Mas era uma estrutura descentralizada: mesmo alguém com conhecimento rudimentar de programação poderia criar seu próprio site por meio de serviços como Geocities.
Web 2.0, a vez da interação
Nos anos 2000, a disponibilidade de conexões mais rápidas e a criação de novas tecnologias remodelaram a web. A tônica foram páginas mais dinâmicas, com interação e mesmo personalização. O contato digital entre as pessoas se acentuou, assim como serviços mais diretamente ligados à experiência de cada usuário – Waze, sites de compras com sugestões para diferentes perfis, buscadores que levam em conta localização e histórico de pesquisas... Blogs, fóruns online e, logo depois, as redes sociais transformaram completamente a navegação. Facebook, Instagram, Twitter, Google e YouTube passaram a concentrar a atenção dos usuários. Qualquer internauta poderia fazer textos, fotos e vídeos e, por meio das plataformas, compartilhá-los com amigos, familiares e públicos mais amplos — a ponto de terem surgido os “influenciadores”. O armazenamento em nuvem facilitou a colaboração online e o streaming.
As grandes figuras dessa fase – que ainda é a predominante – são as redes sociais: 80% dos brasileiros que acessam a web usam essas plataformas, segundo a pesquisa mais recente do Comitê Gestor da Internet no Brasil. O que significa que boa parte do que se vê hoje no mundo digital passa pelo filtro de poucas grandes empresas, cujo modelo de negócio consiste na venda de anúncios para públicos específicos. Em outras palavras: houve descentralização na produção de conteúdo, mas concentração na sua distribuição.
Web3: foco na descentralização
A web3 é, em parte, uma volta ao espírito independente que marcou os primeiros passos da internet. O principal pilar da inovação é uma tecnologia que elimina intermediários, o blockchain. Assim, não há grandes empresas controlando os dados e os serviços: eles não ficam armazenados num único local, mas espalhados por vários computadores ao redor do mundo. Os próprios usuários decidem como gerir seus dados e podem fazer transferências diretamente a outros participantes da rede.
Essa é uma mudança com efeitos profundos. Hoje, um influenciador pode ganhar ou perder visibilidade se as redes sociais em que atua alterarem as regras internas de distribuição de conteúdo (o algoritmo). Numa rede social da era web3, os próprios influenciadores determinariam as regras. Um exemplo é o serviço de música Audius, feito com tecnologia blockchain. Ainda embrionário (mas com apoio financeiro de estrelas como Katy Perry), ele pretende ser no futuro uma alternativa ao modelo do Spotfy. Nos serviços mais usados de streaming de música, a empresa recebe o dinheiro dos assinantes e, com critérios arbitrários, distribui parte dos recursos para as gravadoras e os músicos. No Audius, os próprios artistas poderão determinar como serão pagos.
O que é blockchain, a base da web3?
Blockchain (cadeia de blocos, em tradução literal) é uma espécie de livro de registros. Toda transação inserida lá é agrupada em blocos, que armazenam as informações e transmitem cópias para todos os computadores da rede. Uma vez inseridos os dados, é difícil alterá-los ou removê-los. A transação torna-se pública – mas não quem participou dela. Ou seja: toda a rede consegue saber o que está sendo feito, mas não quem está fazendo. A identidade dos usuários é criptografada. A transação pode continuar com outros membros, e então novos dados juntam-se àquele bloco.
Desses princípios surgem algumas características fundamentais da web3. Uma é a descentralização, mencionada anteriormente. Mas vale destacar outras:
- Imutabilidade: Consegue-se inserir novas informações nos blocos, mas as que já estão salvas não podem ser alteradas. Qualquer modificação seria rapidamente notada, porque há várias cópias dos blocos na rede. “Caso se identifique que um dado é discrepante, ele é descartado”, afirma Valéria Silva, desenvolvedora Web3 na Bosch. Essa é uma característica vista como muito favorável à segurança das operações. Mas pode gerar desafios para correção de erros ou de retirada de dados sensíveis.
- Rastreabilidade: Está relacionada com a característica anterior. Como os dados permanecem na rede, é possível pesquisar o histórico de todo conjunto de transações de um determinado bloco. Isso deverá ser especialmente útil em algumas áreas. Num prontuário médico, por exemplo, seria fácil manter todo o histórico do paciente. Na venda de um carro, ficariam guardados os registros de todas as negociações pelas quais ele passou ao longo de sua história – da montadora até o ferro-velho.
- Posse dos dados: Como o fluxo de dados independe de intermediários, não é preciso trocar dados por acesso, como hoje ocorre nas redes sociais: elas são gratuitas, mas acessam informações privadas dos internautas para montar seu modelo de negócios (distribuição de anúncios personalizados). Tecnologias da web3 permitem que você confirme quem você é sem ter de abrir dados privados.
O blockchain tem sido usado em vários setores, alguns em grau mais adiantado do que outros. “Estudos recentes apontam que o ponto de inflexão da web3 será daqui a três ou cinco anos”, avisa Peter Busch, responsável global pelo produto de Tecnologias de Registro Descentralizado (DLT) no Escritório Central de Tecnologia para Mobilidade, da Bosch. A própria Bosch está explorando esse campo desde 2016. Recentemente, a empresa criou na Alemanha a Fundação Fetch.ai, voltada a pesquisas e aplicações em web3 e inteligência artificial.
Vale destacar algumas áreas em que o uso da web3 tem se mostrado muito promissor.
Bosch Talks T4 #01 - O que é a WEB 3.0?
Aplicações da web3: criptomoedas, o “novo dinheiro”
A primeira aplicação da web3 a se disseminar foram as moedas digitais, ou criptomoedas. A primeira e mais famosa delas é o bitcoin, mas há outras, como a ethereum. Tais moedas operam sem vínculo com governos ou bancos centrais — não são o dinheiro “oficial” de país nenhum, embora possam ser trocadas por dinheiro local. A própria tecnologia de redes é que garante a segurança e a confiabilidade das transações. O que não significa, claro, que tais moedas são sempre uma opção de investimento, pois seu valor em relação às moedas “oficiais”, como dólar e real, também flutua.
Um dos atrativos da novidade é permitir transações diretas. A estrutura descentralizada elimina intermediários, o que agiliza muito as operações. “Hoje, não é possível transferir dinheiro do Brasil para a Colômbia diretamente”, exemplifica Jonatas Santos, da Bosch. “Um banco no Brasil envia reais para um banco que opere com dólar, esse banco envia para um banco parceiro da Colômbia que trabalha com dólar, e esse banco envia para a Colômbia. Isso leva vários dias e tem muitos custos acumulados. Numa economia descentralizada, você pode converter diretamente peso colombiano para real. É muito mais rápido e mais barato.”
Se não há intermediário, como saber se as operações são feitas corretamente? A própria tecnologia é construída de modo a avaliar se o que foi combinado está sendo cumprido. Isso acontece por meio do que tem sido chamado de contratos inteligentes (smart contracts). “São códigos de programação abertos, auditáveis, que automatizam as tarefas a serem executadas”, explica Valéria Silva. Apesar de ter esse “inteligente” no nome, os códigos apenas seguem instruções pré-determinadas.
Os bancos centrais já estão estudando entrar nesse ramo. No Brasil, o BC prepara o Drex, o real digital, que vai permitir transações financeiras com ativos virtuais.
- Quantos brasileiros já usam criptomoedas? Os dados mais recentes da Receita Federal, referentes a julho de 2023, mostram que são 4,13 milhões.
- Isso é muito ou pouco? Depende do ponto de vista. É bem menos que os 151,5 milhões de brasileiros com caderneta de poupança, mas já está próximo do número de pessoas que investem na centenária bolsa de valores de São Paulo: 5 milhões, segundo o relatório mais recente da B3.
- O que é possível comprar com criptomoedas? Há quem adquira esses ativos para investimento, como quem compra euro ou dólar. Mas trata-se de um mercado muito instável, com subidas e descidas frequentes. No Brasil, há cartões-presente que podem ser usados para pedir comida online, contratar serviços de streaming ou gastar em lojas de comércio eletrônico.
A Bosch mantém, na Alemanha, uma equipe voltada a explorar essas novidades.
Bosch Talks T4 #01 - O que é a WEB 3.0?
Aplicações da web3: NFTs, o digital exclusivo
Hoje, se você tira uma foto com seu celular e a envia para outra pessoa, vocês estarão com arquivos idênticos. A facilidade de cópia dificulta muito descobrir, por exemplo, quem criou um meme que viralizou, quem postou primeiro um vídeo que deveria estar protegido por direitos autorais, quem adulterou uma imagem que se disseminou nas redes. A web3 torna viável criar arquivos digitais de código único – uma espécie de certificado de origem. São os non-fungible tokens (tokens não fungíveis).
Eles inauguraram um enorme mercado de compra e venda de itens digitais. Enorme mesmo: no seu pico, os negócios com NFTs atingiram US$ 6,04 bilhões num único dia (1º de janeiro de 2022), segundo a plataforma Slam Net.
Mas o que tanto se adquire nessas transações? Um pouco de tudo: ilustrações, obras de arte, recursos exclusivos em games (uma espada mais valiosa num jogo de luta, por exemplo), nomes de domínio da internet, músicas e até posts de rede social. Sim, em 2021 o ex-CEO do Twitter, Jack Dorsey, vendeu uma imagem de seu primeiro tuíte por US$ 2,9 milhões.
O frenesi inicial esfriou. Hoje, o patamar dos negócios está bem menor (abaixo de US$ 200 milhões ao dia). Em abril, o comprador do NFT do primeiro tuíte colocou-o à venda por US$ 50 milhões; não recebeu lances maiores que US$ 280 (não US$ 280 milhões nem US$ 280 mil; US$ 280, mesmo). Ainda assim, alguns especialistas avaliam que esses ativos ainda poderão causar grandes transformações no mercado digital. Algumas companhias aéreas, por exemplo, já permitem venda de bilhetes aéreos entre passageiros com NFTs.
Aplicações da web3: logística e agropecuária
Algumas das características fundamentais do blockchain tornam a tecnologia especialmente útil na logística. “Em conjunto com sensores e internet das coisas, o blockchain pode capturar todo o processo logístico: por quais cidades um caminhão passou, onde fez entrega, onde estacionou. A tecnologia gera dados imutáveis, que não podem ser fraudados”, destaca Valéria Silva.
Essas vantagens são muito úteis na agropecuária –não por acaso, “rastreabilidade” é uma palavra usada tanto nessa área quanto na web3. Podem se beneficiar todas as cadeias em que é importante ter evidências do que ocorreu durante a produção. Nos segmentos voltados à exportação ou a nichos (como orgânicos), a inovação tende a aumentar muito o valor agregado. Alguns exemplos:
- Pecuária: juntando georreferenciamento, sensores e blockchain, consegue-se saber exatamente por onde cada boi passou. A certeza de que ele não pastou em reservas ambientais será dada pela própria tecnologia.
- Vinicultura: quais uvas foram usadas, quais as características do solo, como foi feito o cultivo – tais informações poderão ficar armazenadas e serem comprovadas para cada garrafa de vinho.
- Orgânicos: esse e outros segmentos que se beneficiam de certificações poderão ter um grande ganho. Graças à rastreabilidade do blockchain, é possível conferir todo o caminho percorrido pelos produtos.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) vem desenvolvendo estudos para rastrear a cadeia de cana-de-açúcar e o gado bovino.
Aplicações da web3: vida urbana
Por enquanto, é incipiente o uso de tecnologias baseadas em blockchain para melhorar o ambiente urbano – transporte, uso dos imóveis, oferta de energia elétrica, água e saneamento, coleta de lixo etc. Mas é um caminho sem volta. Num mundo crescentemente conectado, a segurança e a rapidez da troca de informações serão requisitos indispensáveis. A web3, tudo indica, terá papel fundamental nesse sentido.
- Mobilidade: A Bosch aposta que, nessa área, certamente a nova tecnologia será essencial. “Os carros de hoje usam muitos softwares, e isso vai se intensificar. Os veículos cada vez mais vão trocar informações entre si e com outras estruturas urbanas. Isso exige segurança, sistemas ágeis, muito difíceis de invadir, de hackear. A web3 pode ajudar nisso”, aponta Jonatas Santos.
- Registros imobiliários: Em muitas cidades dos países em desenvolvimento, saber quem de fato é o dono de um pedaço de terra não é algo muito simples. No Brasil, isso ocorre sobretudo em ocupações que nasceram informais – comunidades em morros, áreas de encostas... Quem não consegue comprovar o local de moradia corre o risco de ser excluído de uma série de serviços – desde correspondência até energia elétrica e água encanada. Por vezes, a disputa pela posse da terra pode levar mais de uma década. “Um sistema descentralizado e padronizado para registros de terras poderia reduzir o número de intermediários, aumentar a confiança das partes envolvidas na transação, aumentar a eficiência do processo e diminuir o tempo e o custo do processamento de registros e transações”, afirma um relatório elaborado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-Habitat).
- Transferência de bens: Algumas transações feitas hoje em dia fatalmente chegam a um dilema: quem faz primeiro a transferência, o dono do dinheiro ou do bem? Você paga e depois transfere o carro para o seu nome ou espera o carro ser transferido para seu nome para então pagar? Com o blockchain, as duas ações são simultâneas.
- Energia elétrica: A estrutura descentralizada da web3 pode permitir que domicílios abastecidos por energia solar repassem diretamente a outras residências a eletricidade que sobrar.
- Gestão de lixo: A rastreabilidade assegurada pelo blockchain possibilita uma fiscalização mais precisa sobre a destinação correta de resíduos industriais e hospitalares, por exemplo. Da mesma forma, fica mais fácil identificar qual tipo de lixo cada imóvel está descartando e, assim, conceder incentivos mais direcionados para reciclagem e reaproveitamento.
Claro, a web3, como qualquer tecnologia habilitadora, não é uma panaceia, não é capaz de resolver todos os problemas. Mas é uma estrutura em vários aspectos mais segura e mais sólida do que a existente hoje: ela torna mais fácil impulsionar o desenvolvimento de tecnologia para a vida.