A IA está transformando o mundo do trabalho. Como se preparar para esses novos tempos?
Em 10 de fevereiro de 1996, uma partida de xadrez surpreendeu o mundo. Num duelo entre ser humano e máquina, o russo Gary Kasparov, campeão mundial na época e até hoje considerado um dos maiores enxadristas de todos os tempos, foi derrotado pelo computador Deep Blue. O resultado levou muita gente a especular se a inteligência artificial teria capacidade de superar as pessoas não só no xadrez, mas em outras tarefas. Quase 30 anos depois, essa tecnologia já faz parte do nosso dia a dia: cria imagens e textos a partir de comandos simples, faz as vezes de atendentes virtuais, nos ajuda a acertar o caminho de um lugar a outro nos aplicativos de navegação. Estamos tão íntimos dela que já a tratamos com apelido: inteligência artificial virou IA. Está em toda a parte — inclusive no ambiente profissional.
A relação não é mais de confronto, como na partida de xadrez. Porém, seu uso no trabalho, ainda relativamente recente mas em ritmo de crescimento acelerado, levanta incertezas entre os profissionais. Certeza, só uma: a IA está mudando o mundo do trabalho, trazendo desafios, sim, mas também oportunidades.
Mas como será o futuro e como os profissionais podem se preparar para esses novos tempos? Quais habilidades precisam ser desenvolvidas para acompanhar essas transformações? É o que vamos mostrar neste texto.
A IA não é uma tendência, é uma realidade
Uma pesquisa da Bosch que acaba de ser divulgada mostra que a maioria das pessoas (53%) já usa ferramentas de inteligência artificial para trabalhar. A Bosch Tech Compass 2025 ouviu mais de 11 mil pessoas de 19 a 69 anos em sete países: Brasil, China, França, Alemanha, Índia, Reino Unido e Estados Unidos.
Outros levantamentos confirmam que a IA chegou para ficar. A consultoria McKinsey aponta que, globalmente, mais de 70% das empresas estão adotando alguma forma de inteligência artificial — da automação de tarefas rotineiras a análises preditivas para a tomada de decisões. Um relatório do Fórum Econômico Mundial sobre o futuro das profissões mostra que nos próximos anos quase um quarto dos empregos passará por mudanças provocadas por essa tecnologia.
“Todas as áreas e a maioria dos setores já estão sendo transformados pela inteligência artificial”, afirma Amanda Sá, responsável pela área de inovação e transformação digital do Global Business Service da Bosch na América Latina e pela Academia de Talentos Digitais (DTA) da empresa. “Mas em algumas o impacto é realmente maior e mais significativo: tecnologia, informação, mídia, comércio atacadista, varejo e também serviços financeiros e operacionais. No Brasil, serviços operacionais é onde mais se têm buscado profissionais de tecnologia para apoiar as atividades do dia a dia, que são atividades rotineiras, muito repetitivas”, acrescenta.
Por que se preparar: IA está sendo usada desde o recrutamento
Para quem está no mercado de trabalho — procurando emprego ou empregado —, aprofundar-se nessa área é fundamental. Grandes empresas, especialmente, usam inteligência artificial em todas as etapas dos recursos humanos.
- Seleção - “A IA auxilia muito na triagem, para indicar o melhor perfil para a vaga ou até qual que é a melhor forma de fazer um descritivo de vaga”, diz Gustavo Beltramini, especialista em atração de talentos da área de Recursos Humanos da Bosch. Da mesma forma que a IA é usada pelos recrutadores, avalia, também pode ser uma ferramenta para quem busca uma colocação: ela adapta o currículo de acordo com as vagas e ajuda na preparação para uma entrevista de emprego.
- Avaliação de desempenho e feedback - A tecnologia pode ser uma aliada no desenvolvimento de mecanismos de avaliação e de feedbacks tanto para líderes como para liderados.
- Desenvolvimento profissional - Ferramentas de IA ajudam a identificar tendências de mercado e indicar quais competências é preciso aprimorar ou desenvolver. “Na Bosch, a gente para tem para isso ferramentas como o Ask Bosch, uma versão customizada do Chat GPT. Mas mesmo o Chat GPT comum pode ajudar. Saber para onde o mercado está olhando auxilia na preparação, na construção desses conteúdos”, diz Beltramini.
O especialista em RH destaca, no entanto, que as máquinas, por mais que sejam bem treinadas, são apenas auxiliares. Por trás desses processos há pessoas, de carne e osso, para avaliar e tomar decisões. “Entrevistas ainda não são bem feitas por robô. Quando a gente fala de desempenho, o fator humano é ainda mais forte. Uma avaliação, um feedback, é muito construído com confiança e vínculo, contato humano.”
Por que se preparar: IA traz ganhos de eficiência
A pesquisa Bosch Tech Compass mostra que, segundo os entrevistados, o mais importante para navegar pelo mundo da inteligência artificial é usar essa tecnologia de modo eficiente — essa é a opção citada por 59% dos entrevistados; no Brasil, o percentual é ainda maior (68%).
“Definitivamente, o ganho de eficiência é a grande promessa da IA, e eu não acho que é só promessa, a gente já está vendo isso acontecer”, diz Mariana Antonialli, gerente de treinamento da Bosch para a América Latina. Foi o que constatou uma pesquisa da Universidade de Stanford e do Massachusetts Institute of Technology (MIT) feita com trabalhadores da área de atendimento ao cliente em um call center. O estudo mostrou que a inteligência artificial pode aumentar a produtividade em até 14% e tornar a realização de tarefas até 34% mais rápida.
Mas, assim como na área de RH, a máquina é somente um instrumento. “Há competências que não serão substituídas, como o pensamento crítico. A IA ajuda a ganhar eficiência quando analisa muito mais dados do que nós, humanos, conseguiríamos. Mas a tomada de decisão continua centralizada no ser humano”, ressalta Antonialli.
Como se preparar: as habilidades que precisam ser desenvolvidas para ter sucesso com IA
Com tarefas simples ou repetitivas sendo executadas por IA, trabalhadores podem se dedicar a atividades mais complexas e estratégicas. O pensamento crítico se destaca, justamente, entre as habilidades mais importantes listadas pelos entrevistados na pesquisa Bosch Tech Compass. Segurança, ética, capacidade analítica e capacidade de identificar resultados tendenciosos também estão presentes, assim como a inteligência emocional.
IA: veio para ficar?
“O que a gente vai precisar para continuar desempenhando a nossa função, em parceria e colaboração com a IA, é de pensamento crítico, analítico. Estou falando de ter liderança, ter curiosidade. Não vejo essas competências sendo substituídas pela inteligência artificial”, diz Antonialli.
São exatamente habilidades como essas que estarão em ascensão até 2027 segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial sobre o futuro do trabalho. Isso vale para toda a equipe, independentemente da função ou da hierarquia:
- Pensamento criativo
- Pensamento analítico
- Conhecimento tecnológico
- Curiosidade e aprendizado constante
- Resiliência, flexibilidade e agilidade
- Motivação e autoconhecimento
- Pensamento sistêmico
- AI e big data
Como se preparar: onde fazer cursos
De acordo com a Bosch Tech Compass, quatro em cada cinco (82%) entrevistados têm planos de se aprofundar nos conhecimentos sobre IA. Como? A maioria (53% no total da amostra, 63% no Brasil) planeja estudar por conta própria. Essa é sempre uma possibilidade, claro. Contudo, na internet o volume de materiais sobre o tema é tão incontável quanto desigual — há muito lixo e muita coisa boa.
Uma boa alternativa é fazer as capacitações no trabalho, onde provavelmente o conteúdo será mais orientado a questões que de fato fazem diferença no seu dia a dia. Porém, poucas empresas oferecem treinamentos na área, como indicou a própria pesquisa da Bosch.
No segundo semestre do ano passado, o Centro de Treinamento da Bosch (BTC) lançou o curso IA For All (IA para Todos), voltado a colaboradores, abordando inteligência artificial e como interagir com ela. Lançou também um treinamento para líderes da empresa na América Latina. “O líder precisa não só estimular o time dele, mas entender como a IA pode ajudar no dia a dia. É entender qual mágica a varinha faz”, compara Mariana Antonialli.
Mas a Bosch volta-se também para o público externo. A empresa iniciou, há três anos, um programa de formação tecnológica, a Academia de Talentos Digitais (DTA). O propósito, diz a diretora Amanda Sá, é exatamente formar pessoas preparadas para lidar com a transformação que já está acontecendo.
Em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), a DTA oferece em dois anos formação básica em linguagem de programação para jovens entre 16 e 19 anos, além de aulas com mentores da empresa, nas quais se aprende a aplicar soluções e se absorve a cultura inovadora da empresa.
O processo seletivo considera principalmente a capacidade e a disposição para aprender, e aprender rapidamente: “A gente quer entender se a pessoa tem habilidades como criatividade, pensamento crítico. São essas pessoas que nós queremos para construir o futuro”, avisa Amanda Sá.
A demanda é grande: no último processo seletivo, foram mais de 16 mil candidatos para 320 vagas. “E, como a diversidade é relevante para a inovação, no programa nós temos 52% de mulheres, 32% de pessoas negras e 9% com deficiência.”
O que é preciso para começar
Pode haver um começo, mas não haverá um fim: estamos numa era que requer aprendizado (e reaprendizado) constante. “É preciso aprender rápido e aprender sempre”, resume a especialista em treinamento da Bosch Mariana Antonialli. “Há uma necessidade de atualização constante”.
Não tenha medo de começar - “Muitas pessoas têm receio, não sabem o que fazer, se devem começar agora ou esperar. A dica é: não espere, as coisas já estão acontecendo”, alerta Amanda Sá.
Pesquise e busque alternativas - Há diversos treinamentos gratuitos ou de baixo custo em várias áreas de atuação, com materiais de qualidade acessíveis e disponíveis na internet, e vídeos no YouTube. E há ainda cursos de extensão de importantes universidades, como a USP, e em canais de empresas de tecnologia.
Fique atento às oportunidades - Uma das habilidades importantes do trabalhador moderno é enxergar onde há potencial de aperfeiçoamento. Pense em qual é o problema a resolver, quais as metodologias a serem melhoradas e como usar a inteligência artificial para isso — automatizando uma atividade manual, por exemplo.
Seja curioso e protagonista - Tenha iniciativa, assuma o controle de sua carreira e busque aprender o tempo todo.